...Aquele domingo começou mais cedo. Quando acordou descobriu que o gelo no copo de whisky ainda insistia em existir. Observou o gelo ir perdendo sua forma enquanto pensava na noite passada. Mas pensar na noite passada implicava em pensar em outras noites e outros dias que já não estão no calendário. Suas lembranças são sempre batidas no liquidificador.
Lembrou-se que na infância acreditava em uma conspiração onde as pessoas escondiam-se usando máscaras e fantasias. Ela procurou muitas vezes pelos vestígios dos disfarces, mas nunca encontrou.
Teve vontade de deixar-se para trás, mas sua sombra sempre a seguiria, uma fuga de si mesma não era possível. Ela que sempre foi determinada a não deixar os bons momentos e as pessoas donas deles, foi deixada. Perguntou-se onde estariam os sobreviventes de seus sentimentos.
Comprou então uma lousa e divertia-se com palavras que não carregavam o peso da posteridade. E entendeu que as palavras só têm importância e seus significados só são significantes enquanto são lembradas por quem as proferiu.
Sofria de saudosismo crônico. Toda vez que se olhava no espelho não encontrava a pessoa dos seus antigos retratos. Resolveu aperfeiçoar o passado esquecendo o arrependimento. Sentia saudades apenas dos momentos perdidos. Lembrava-se mais dos beijos que não deu e dos abraços que não correspondeu, ainda tinha a incerteza de como poderia ter sido.
Colecionava “obrigados” sinceros, mas não sabia o que fazer com eles. Quem lhe ensinou a não ser hipócrita se afundou na hipocrisia.
Era na sua estática estante de livros que encontrava a vida.
Olhava as vitrines e via soluções descartáveis para o vazio à venda. Esqueceram de limitar as compras e acostumados que estavam com a descartabilidade começaram a tratar o planeta como descartável. Estavam também confundindo as outras pessoas com artigos adquiridos em lojas. Assim perderam-se os sonhos, as amizades, a capacidade de pensar diferente, a alegria sincera, pois não foi possível embalá-los e colocá-los nas prateleiras. O prazo de validade das relações interpessoais transformou-se então proporcionalmente inversa ao tamanho do orgulho.
Ela gostava muito do seu espelho, nele via-se como era. Os outros gostavam mais de um espelho que reflete outras imagens, costumavam chamá-lo de TV, nesse espelho se vê pessoas que não são as que estão na frente e ouvem-se vozes ditas em outros lugares. Acostumaram-se. Vêem quem não são e ouvem o que não falam, e as poucas vezes que vêem a si mesmos imaginam e desejam ser como o outro reflexo. Ela costumava comparar os reflexos do espelho-TV com as sombras da caverna de Platão, vê-se a vida acontecendo, mas não se vive.
Seu gato entrou tranqüilo pela janela saltando elegantemente. Passou pelo quarto olhando e cheirando tudo como se fosse a primeira vez que estava ali. E pensou no quanto gostava dele e quanto admirava a capacidade que ele tinha de admirar o cotidiano. Quando ela falava, ele respondia com o silêncio, que de todas as respostas era a que ela mais gostava.
A brisa que cavalgava em um minuano balançou a cortina. Ela estava cultivando um tango e ouvindo rosas. Quando abriu os olhos não saiba se havia adormecido e sonhado ou fechado os olhos e vivido.
De um par de vasos que eram ímpares, voou uma borboleta que pousou no copo de whisky. A liberdade que a borboleta transparecia lembrou-lhe que na noite passada perdeu tempo com reflexos que não eram seus, o controle remoto ainda estava do seu lado. E percebeu que toda a sua vida podia ser resumida em pensamentos que cabiam em um cubo de gelo dentro de uma bebida dourada. E enquanto o último fio de vida dissipava-se do gelo em meio ao whisky, ela teve a certeza que embora não haja fantasias e máscaras as pessoas escondem-se em si mesmas.
sexta-feira, 26 de maio de 2006
Lembranças liquidificadas...
Tocplocado por
Dalila Floriani
às
11:51
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4 comentários:
eu com o gato no colo, do outro lado da tv, observando a casa atras do espelho:
i´m lost for words, speechless
Belo texto. Um tanto melancólico e desesperançoso, é verdade, mas a vida é algo assim mesmo (para mim, ao menos);
I see you on the dark side of the moon, Dalila...
Rolo
hey you,
take a walk on the wild side
;)
essa eh minha prima!
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